terça-feira, 19 de abril de 2022

Biografia em Rede - A Mineira mais Campista

A MINEIRA MAIS CAMPISTA

 

Eliana Garcia

 

Quem um dia encontrou com uma senhora andando pela cidade carregando um galo em uma sacola pode ter estranhado. Incomum!? Bizarro!? Esquisito!? Não. Era poesia. O famoso galo chamava-se Manhã, nome inspirado no famoso poema Tecendo a Manhã de João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã/Ele precisará sempre de outros galos/ De um que apanhe esse grito que ele/ e o lance a outro...” Reafirmando: era poesia não só por isso. Era poesia porque Lucia Miners vivia literalmente sua sensibilidade poética expressa tanto em seus textos quanto no seu modo de vida. Uma vez Lucia plantou e colheu alimentos dentro de um cômodo destelhado de sua própria casa. Convivia com plantas e animais como quem convive com as pessoas.

Lucia nasceu em Barbacena, Minas Gerais, em 1934. Viveu no Ceará e no Rio de Janeiro, onde, durante a ditadura militar, criou um importante suplemento literário no jornal Tribuna da Imprensa. Por meio desse projeto, ela realizou um expressivo intercâmbio cultural com escritores de diferentes pontos do país. Conheceu Campos ao organizar um ciclo de palestras para a Faculdade de Filosofia. Aqui, viveu e trabalhou por trinta anos apaixonada pela cidade, pelo povo, pela cultura do lugar e pelo rio. Dessa paixão caudalosa e molhada, surgiu o poema “Parahyba de Mim” e muitos outros com os quais venceu vários festivais: “Sobre a tessitura do existir/ o que dizer/ de amor?/ Do ser capaz/ de manejar todo o dia/ (cada coisa em seu lugar)/ e de ser apenas/ a própria pessoa/ sem se diluir nos outros/ e, ao mesmo tempo, recebê-los/ com a naturalidade da posse de um abraço/ ou de seu próprio cabelo/ como poder? (...)”

A Lucia do Galo, como muitos a conheciam foi mãe, avó, educadora, jornalista, escritora de prosa e de versos primorosos. Possui uma escrita atual que desconstrói estereótipos, que fala de temas delicados que afetam os sentidos de quem a lê. Mas  Lucia  precisa ser mais lida, melhor conhecida pelos seus conterrâneos de coração. Por isso, Carolina Cássia, Christina Cruz, Roosevel Maia e Vera Pletitsch, pessoas de e da cultura campista, têm fomentado os “Encontros D’Balde” e o  sarau “Parahyba de Mim” com o objetivo de homenagear e difundir  a obra da escritora . Além disso, ela possui ainda material inédito que oxalá será publicado. O grupo busca caminhos para valorização da sua obra. “Quando o galo cantar, os escritos de Lucia voarão.” E ele cantará certamente, embora os tempos estejam sombrios para a arte.

Ela escreveu muitos de seus poemas em guardanapos e folhas avulsas, espalhando-os entre os muitos amigos. Geralmente, esse material era ilustrado por ela mesma.

Lucia Miners, uma mulher inventadeira de histórias, criadora de versos que rimou Campos dos Goytacazes e o rio que a corta ao meio com a sua inspiração mais profunda e que partiu em 2012, deixando a impressão de que a sua cena ainda está em curso, assim como o rio, e, que ela merece mais aplausos, pois, além do mais era a mineira mais campista. Seus textos revelam e comprovam essa cidadania.

 


 








Nasceu entre as montanhas de Minas, mas veio para Campos ainda jovem. É graduada em Letras pela FAFIC, Pós em Língua Portuguesa (PUC-BH) e PÓS em Currículo e Prática de Ensino (PUC-RJ). É autora de livros de Português para o Ensino Fundamental, de livros de literatura infantil “Nino sem juízo” e assina uma coluna no jornal Terceira Via.

 

 

Arquivo de Fotos









Lúcia Miners na Biblioteca Infantil do Palácio da Cultura – Biblioteca Nilo Peçanha, que recebeu o seu nome.

 















Algumas de suas premiadas obras infantis

 


 

 









Homenagem a Lúcia Miners

terça-feira, 5 de abril de 2022

Biografia em Rede - Ir. Zilda de Castro

Ir. ZILDA DE CASTRO

 

Maria Emilia Juncá

 

Nas décadas dos anos de 1940, 1950 e 1960, não era raro ver uma freira baixinha e gordinha, véu preto esvoaçante, no meio da Alberto Torres, a rua mais importante da cidade na época, parando um carro, um bonde, um ônibus ou até mesmo uma ambulância ou uma “rádio patrulha”. Ir. Zilda de Castro estava em ação. Vestida em seu hábito preto salesiano, ela não fazia questão de mostrar discrição em seu trabalho. Parava o trânsito mesmo! Com isso, ela distribuía cotas de responsabilidade social quando pedia carona, poupando seu tempo dedicado aos pobres. Afinal, um problema social é um problema comunitário. Ela estava certa.

Ir. Zilda nasceu em Minas Gerais, em uma comarca de Mariana, Piranga, no início do século XX, 1905. Entrou para o convento em 1929 e passou a ser o evangelho vivo. Ficou até 1938 como missionária no Nordeste e veio transferida para o Auxiliadora, o primeiro colégio salesiano em Campos dos Goytacazes- RJ, onde foi referência de compromisso com o evangelho até morrer, em 1976.

Como toda irmã salesiana, Ir. Zilda era educadora. Reza a lenda de que era uma excelente professora de matemática, mas, na realidade do aqui e agora, suas contas fechavam nas contribuições que pedia a negociantes, usineiros, doutores, fazendeiros e quem mais estivesse a sua frente. Ela ia direto ao bolso e pedia mesmo. Era um gesto de cobrança social: se alguém tem sobrando e seu próximo tem faltando, ela se incumbia de equacionar o problema como pudesse.

Ela não se importava com a tradicional atitude quieta e submissa sugerida às mulheres religiosas de sua geração. Ir. Zilda impunha a vivência evangelizadora nos colégios, nos lares, no comércio, onde quer que fosse. Ela coletava material por todos os cantos para aliviar a dor dos que precisavam de seu dinamismo. Visitava a cadeia diariamente, andava por toda a cidade com uma caderneta de apontamentos sempre cheia de compromissos. Frequentava todas as esferas sociais, penetrava nos lugares mais variados e era respeitada e reverenciada por todas as pessoas de todos os cultos, de todas as atividades. Detalhe: tinha sempre seu terço no bolso, que rezava o tempo todo. 

Quando menina, eu vi Ir. Zilda entrar no Depósito das Sedas, loja de tecidos que era referência na cidade. Eu estava com minha mãe e a vi se aproximar. "Seu Victor, preciso de flanela para levar para..." Na mesma hora, a flanela foi cortada, embrulhada e com um "Deus te abençoe", Ir. Zilda saiu para visitar mais uma família em dificuldade. Que orgulho! Ela era freira no meu colégio!

A cena se repetia no setor onde a necessidade surgia: farmácia, material escolar, armazéns. Todos respeitavam. Todos contribuíam. Todos estavam conectados em sua rede de providências cristãs. Ir. Zilda era uma ponte que protegia a privacidade de pessoas que se sentiam menores por serem humildes e, muitas vezes, humilhados em sua condição precária.

As alunas salesianas, meninas de classe média, tinham um compromisso todo sábado à tarde: o Oratório Festivo. Íamos brincar, rezar e orientar a garotada da favela do Tamarindo. Assim a gente entendia o conceito de fraternidade.

O tempo de Ir. Zilda passou. Ocupar-se das diferenças sociais passou a ser secundário para obter o sucesso pessoal e a formação individual se tornou prioridade para “ser alguém na vida". Os adolescentes se tornaram alvo da mídia, o que distraiu a garotada para outros programas. Conforme os anos se passavam, a dedicação a si mesmo recebeu destaque. Era cafona ser tão simples, ser tão irmão. Os últimos anos da década de 1960 e a década de 1970 viraram o rumo da classe média. A ênfase na individualização e na formação profissional parece ter se tornado uma obsessão no ensino. Todo mundo queria ser "o melhor". Esse tempo coincidiu com o envelhecimento de Ir. Zilda. Mesmo assim ela continuou.

 

“Não tendo mais força para continuar suas andanças evangelizadoras e de promoção social pelo interior do município, nas periferias e nas escolas públicas da cidade, dedicou-se ao curso fundamental da Escola Noturna gratuita do ‘Auxiliadora’, dando diariamente aulas de matemática para seus alunos operários, comerciários e domésticas de 19h às 20h30. Conhecia cada um destes alunos. Visitava-os em casa, arranjava-lhes emprego, orientava-os para a qualificação profissional, ensinava-lhes também datilografia e violão. Animava-os na luta por uma vida melhor, mais digna e responsável. Isto ela fez até o dia 24 de agosto de 1976, quando tombou em silêncio para não mais se levantar. Deixou a régua, o esquadro, o giz e a Bíblia.”

Ir. Suraya Chaloub, 06 de dezembro de 2000.

 

 



Maria Emília Juncá é licenciada em Letras, Português-Inglês pela Faculdade de Filosofia de Campos. Pós-Graduação em Educação Brasileira. Foi docente e Coordenadora do Curso de Licenciatura em Letras do UNIFLU. É autora da obra “Gaveta de Contos” e membro da Associação de Autoras e Autores Campistas.

 

Meus sinceros agradecimentos a Dr. Welligton Paes, por sua atenção, sua cordialidade em me receber em sua casa, sua dedicação à memória campista e, como eu, por ser um apaixonado pela grandeza de Ir. Zilda.  Como pessoa próxima a ela desde menino, Dr. Welligton viveu brincadeiras, aulas de catecismo, experiências que, generosamente, compartilhou. Suas histórias pessoais, com detalhes vivos, somados à minha lembrança de Ir. Zilda, trouxeram mais vida a este texto.

 

 

Arquivo de Fotos

 













Página do livro Hébivio Cordeiro sobre o Cemitério do Caju.





















Lembrança distribuída por ocasião da missa de sétimo dia.





















Texto publicado no jornal Monitor Campista




















A autora Maria Emília Juncá com o bibliófilo Welligton Paes durante pesquisa.





















A autora, o bibliófilo e sua esposa Neyde Teresinha.